quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

UM ACONTECIMENO NA VIDA DO PINTOR-VIAJANTE - César Aira

        César Aira, escritor argentino de muitas obras, escreve a novela na 3ª pessoa, portanto um narrador observador, impessoal, realista e objetivo: "Por acaso "os pampas" eram mais planos do que estas panícies que estavam atravessando?"
      Convida o leitor para um flashback, ou seja um retorno no tempo da narração com o emprego do verbo na 1ª pessoa do plural (precisamos): "A esta altura, precisamos voltar um pouco atrás para termos uma idéia mais clara do trabalho que o jovem artista iniciava."
       Seus personagens são históricos como Johan Moritz Rugendas, alemão  que veio para América pintar a natureza. Características do naturalismo pode-se observar no decorrer da narrativa.
      Na hereditariedade, faz uma árvore genealógica da família Rugendas: "Seu bisavô, Georg Philip Rugendas (1666-1742) foi o iniciador da dinastia de pintores. Assim o fez porque na juventude perdeu a mão direita."        
       Na natureza, o pintor trava uma luta com  estas  forças: "Por entre as montanhas, rodavam faíscas brancas do tamanho de casas e os raios eram como tacos de um bilhar meteórico."
       Ele é cintificista/naturalista,  tinha a mesma idade de Darwin e a exploração científica feita à campo se estendia no velho e novo mundo e o cientista estudava a origem das espécies, também pela América e em um diário escreveu Viagem de um naturalista ao redor do mundo (1839). Disse Darwin: esta viagem "determinou toda a minha carreira" e partindo do Brasil em 1832 depois de percorrer quase toda costa exclama: "Dou graças à deus e espero nunca mais visitar um país de escravos..." e a referência a  "Alexandre Humboldt (1769-1859) foi um cientista totalizador, talvez o último deles.Humboldt além de várias especializações, também  foi      um    explorador.
      Na  filosófia, Nietzsche com a mais alta expressão de afirmação de vida, de dor e alegria e superação do homem (super-homem): "Só faltava a concepção de uma consciência que fosse não apenas consciência em si, mas também de todas as coisas do universo."  
     Esta narrativa, este viver entre as montanhas, lembra-me um grande livro de um naturalista americano e filósofo que assim escreveu: "Fui para a mata porque queria viver deliberadamente, enfrentar apenas os fatos essenciais da vida e ver se não poderia aprender o que ela tinha a ensinar, em vez de, vindo a morrer, descobrir que não tinha vivido." (Walden ou A vida nos bosques de Thoreau). 
      Utópico, seria inviável percorrer os Andes em cavalos e mulas mesmo depois de um grande acidente que o imobilizou: "O segundo raio o fulminou menos de quinze minutos depois do primeiro."  Aponta também para a pintura feita ao longo do trajeto, com dificuldades para enquadrar a montanha dentro do quadro: "Além disso, acertar com o desenho do Aconcágua não era tão fácil, como não era o de nenhuma montanha em particular." 
   Psicanalítico quando emprega substantantivo "mecanismo" significando automatismo, com predominância do inconsciente sobre o consciente ou ego profundo operando,  sem se afastar do alter ego  "como mais", não só este problema, mas muitos outros no decorrer da viagem e pintava freneticamente sem descansar "e operava a contigüidade como mais um mecanismo." 
     Em Arte de Escrever Schopenhauer, narra como era a pintura no "primeiro quarto deste século, no qual a arte era considerada meramente um meio e um instrumento de uma religiosidade e, com os únicos temas escolhidos eram os da igreja..." Rugendas mais tarde se dedica a pintar as batalhas que juntamente com a primeira citada por Schopenhauer entraram em decadência, "seguindo-se a ela o retorno à natureza que se manifesta em quadros de gênero e todos os tipos de cenas da vida, num tipo de pintura que por vezes se perde em obras vulgares." Aborda o pressentimento: "Não ouviam nada, a não ser o tênue pressentimento de um zumbido que deveria ser psíquico." 
      Ficcional  quando precisa usar os recursos estilísticos. A realidade mesmo em carta ele não enviava para a irmã: "Esta parte do episódio foi ainda mais inexplicável que de todo o resto. Mas não podemos duvidar da realidade disso porque ficou documentado no epistolar do artista..." 
       Ele passa do naturalismo para o surrealismo com descrições monstruosas e de loucura: "Todo o dano tinha se concentrado na cabeça...A dele não se parecia com nada. Tinha ficado como aquelas coisas que não se vêem nunca, com os órgãos de reprodução vistos por dentro..." ou "O emaranhado de relâmpagos nas nuvens fazia e desfazia figuras de pesadelo." A dor e as sequelas marcado pelo acidente não atrapalhou o pintor, mas o fez melhor. "Produzia uma cascata transitiva transparente em cada círculo e, a partir dela, recompunha-se o quadro, como arte...Por sua vez, nos detalhes, recuperava-se a sensação de estranheza, o que cem anos depois seria chamado de "surrealista", e que naquele tempo era a "fisionomia da natureza", o que quer dizer, o procedimento." O narrador emprega o sofrimento apenas como ilustração (sentido figurado) para mostrar a transição pela qual passa o pintor ou a arte em si, ora pinta com luminosidade e com traços leves, ora desenha  (superação na dor igual superação na arte). "Rugendas, de sua parte, estava tão concentrado nos desenhos que não se dava conta de nada. Na meia-noite selvagem, drogado pelo desenho e pelo ópio, ele operava a contigüidade como mais um mecanismo. O procedimento seguia atuando por ele. De pé, às suas costas, oculto nas sombras, o fiel Krause estava atento."
      Na dicotomia destaco um pintor como sendo "afetado e desengonçado como adolescente" ou "eu sou um monstro?" e "O raciocínio era o seguinte: se dava o mesmo trabalho, em princípio, dizer a verdade e mentir, sem lacunas nem ambiguidades?"
     Objetivo: "Em poucos dias, já estavam no meio da cordilheira, mesmo descontando o tempo para pintar."
         Não deixe de ler o pintor-viajante, de um encantamento do começo ao fim. Viaja-se com o narrador, confira.
   

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